Ensaio como Adorno


Na sala dele tinha um peso de papel peculiar. Não sabia o porquê de ele ficar ali, atravancado no porta-lápis, bem naquele lugar de colocar o clipe. Era evidente que fazia meses que ninguém repunha o estoque de clipes ou grampos, mas pensava que o meio acadêmico fosse mais dogmático, extensivo aos objetos que o compõem. A superfície lisa e polida do peso, nada tinha a ver com aquele envolto plástico que o encarcerava. Observando-o mais a fundo percebi que o porta-lápis estava rachado, talvez a força, a massa, o acrílico não suportou. Mas tudo era cinza, meio mórbido e gélido naquela sala. Diria até que faltava vida, não fosse o calor insuportável no fim da tarde. Completava ali minha fotossíntese, junto às plantas sintéticas do corredor. Tantas divergências físicas e teóricas num só departamento, que não me admirava o porta-lápis haver sido promovido a suporte de pedra. Não uma pedra qualquer, um peso de papel feito por um artista desconhecido, mas que como nenhum outro levava a vida a reproduzir pesos de papel com formato oval. A cor era meio musgo, diria até que havia algum apelo tátil. Parecia um ovo de bagre. Isto é, se a realidade não nos proporcionasse ovos brancos padrão. Dependendo da sorte o padrão é podre, mas nada que não seja o complemento de um dia ruim. Se encontrássemos mais ovos de bagre, reitero que só servem àqueles que são também peso de papel, talvez fizéssemos relatos diferentes da nossa experiência. Um dia resolvi testar sua utilidade e o coloquei em cima de uns rascunhos sobre estética da literatura feminina. No papel continha menos filosofia que no ovo de bagre. Não que eles sejam menos importantes ou insignificantes, mas a paródia da criação poética, este ensaio, só faria sentido se o ovo de bagre fosse mais importante.  Coloquei o objeto ali e antes que eu pudesse captar o movimento premeditado, o ovo de bagre já estava no chão. Como se uma mulher tivesse se jogado da janela de seu prédio e o desenho de seu corpo, no chão, imitava a faixa de homicídio daquele seriado, como é mesmo o nome...Ali, naquele momento-movimento, o ovo-bagre protagonizava um triste desfecho. Não fosse a liberdade que assumiu antes da queda. Há seres que necessitam mais espaço. As concretas paredes de vidro não suportam seu peso-corpo, o ar esteve cristalizado dentro daquele apartamento. O acrílico rachou. Liberdade concedida pela mão que os tira dali. Liberdade de linguagem, que antes de tudo, muda o espaço-tempo da verdade. É necessário, por isso, permitir que o movimento seja contínuo. Estimulemos nosso ritmo, baseando-nos na rotina feminina diária. Confessemo-nos fartas deste aquário, dos peixes-bagres e da frieza dessas paredes. A linguagem é onde já não estou. Ali, junto os pequenos cristais que condenavam o ocorrido. Incidente que passaria despercebido, não fosse este relato.

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