Conto de la perra loba
Minha
avó nunca foi fã de cachorros, me lembro até hoje de quando ela contava uma
história trágica sobre a cachorra da vizinha que um dia acordou na pá virada e
lhe atacou pelas costas. A boca chegava a salivar quando ela contava, cada vez
um novo detalhe, um gesto mais alto que lembrasse o ato. No fim eu sempre
imaginava uma velha senhora fazendo tricô na cadeira de balanço e um cão do
tamanho de um urso arrancando-lhe o cerebelo.
Quando
decidimos ter a Leona, além de nos comprometermos em tirar o cocô e o xixi,
tivemos que pedir pra vovó a devida permissão para a circulação livre do nosso novo
cachorrinho. Ela aceitou desconfiada, mas ficou feliz depois que o filhote de
caramelo Labrador chegou tímido na nossa sala, ele parecia de pelúcia, até
vomitar. Vômito armado, para averiguar o comprometimento dos novos donos, tenho
certeza.
No início ela foi campeã no salto com sapato
furado na boca e depois de muito defecar nos cantos da sala, ela aprendeu que o
terraço era mais espaçoso e aconchegante. Acabara a era dos jornais velhos com
cheiro de xixi. Daí ela aprendeu a dar a patinha. Não contentes, pedíamos a
outra. Quando ela percebia que estava fazendo exatamente o que pedíamos, depois
do carinho na cabeça, ela não se aguentava na dança da rabada e já vinha
pulando em cima da gente.
Depois
ela ganhou o bicampeonato em pegar jabuticaba do pé, um dia ela quase escalou,
mas já pesava muito e não aguentou. Era bonito ver aquele animal de pelo claro
e porte alongado, se equilibrando pra pegar uma frutinha. Descrevendo assim
pode até parecer que ela era delicada e perspicaz, mas era desastrada demais
pra qualquer desses adjetivos, era só pose. Da janela da cozinha ela já sentia
o cheiro da gente querendo chupar laranja. A ideia ainda estava se formando na
nossa cabeça e ela já se sacolejava lá de fora, quando terminávamos de
descascar ela já estava no nosso pé, na postura mais esguia que o mundo canino
poderia propor. Postura que ia pro saco quando lançávamos a laranja. Era
engraçado. Quando jantávamos, ela também comia lá no canto dela. Quando
usávamos a área dela pra fazer churrasco ela não sabia em quem batia o rabo
primeiro. Era rabada, atrás de rabada. Carinho na cabeça, lançamento de pães a
longas distâncias e pra carne mesmo ela não tava nem aí. Até cerveja a bicha
tomava do chão, a batizamos nesse dia. Ela espirrou a beça.
Uma
noite ela ouviu um barulho estranho do terraço e correu pra ver, logo depois
ela desceu manqueta da pata da frente. Nos assustamos. Ela sempre foi muito
dócil, não gostava de homens, muito menos dos entregadores de gás e era muito
desconfiada de barulhos noturnos, já dedurou muitos jovens chegando em casa
alcoolizados. No entanto, quando ela nos via em perigo, ela acionava sua parte
animal-selvagem e virava a leoa que lhe nombramos. Uma pena que era desastrada.
Depois de supor envenenamento, espinho ou caco de vidro e nada encontrar, a
levamos ao pediatra. Nem por reza braba meu pai conseguia chamá-lo de
veterinário, ainda bem que não foi algo pessoal, ele a levou em mais um monte,
todos pediatras caninos. Descobriram um fungo na unha dela, depois uma doença
do carrapato, depois câncer no útero, depois o fígado e o estômago estavam
ruins e aí o fungo veio de novo. Foram alguns dias até acreditarmos que não era
o capacete de plástico que a estava deixando depressiva. Começamos a achar que
ela sentia a falta da minha mãe, o que também podia ser. Depois ela começou a
engasgar enquanto respirava. Meu pai lia todos os dias o nome da doença que dá
na traqueia, o pediatra lhe havia dado mais essa possibilidade, dessa vez via
mensagem de texto. A coisa estava assim, cada dia um novo dia que ela não comia
e ele se desesperava. Daí minha mãe
voltou pra casa e eu parti. Não sei dizer exatamente o nome que se dá ao verme
que ataca o pulmão e o coração dos cães, mas eles são cruéis.
Sempre
admirei a astúcia e elegância dos gatos, porém a Leona se tornou parte da
família e mantínhamos uma relação à distância que qualquer outro animal
invejaria. Ela amoleceu o coração da vovó, no fim tínhamos que competir às
delícias gastronômicas da casa dela com a “leleo”. Na casa da outra vó, se
chegássemos com a Leona, não tinha abraço, a veia já corria pra pegar água
fresca e vinha dizendo o quanto a cachorra estava sedenta. Ela também ficou melhor
amiga da minha tia baiana que não come carne, todo natal a Leona perseguia suas
frutas.
Quando
a Leona tava doente, perguntei a minha mãe o nome do santo dos cachorros. Ela
disse que São Francisco protegia os animais. Depois que ela partiu, dormindo e
tranquila, minha avó veio dizer que existe um céu para cachorros e garantiu que
ela estava bem. Essa verdade me bastou e minha cabeça enfeitou esse céu com
alguns pés de laranjas descascadas, uns girassóis, uma dúzia de pés de banana e
um pé de pão brotando direto da terra. Continuarei regando plantas na desculpa
de te fazer um chamego, meu amor, espero que o pé de pão esteja virtuoso visto
daí de cima. Obrigada pela presença bagunçada e obediente.
Comentários
Postar um comentário